Friday, October 22, 2010

Dia 267 - Carmen e, mais uma vez, os japoneses


Mais uma de Chicago. Num só dia vi uma das óperas mais fantásticas de todos os tempos (ou será a mais fantástica?) e fui apresentada a uma experiência completamente nova nas artes.
Começando pelo começo, no início da tarde fomos à Lyric Opera de Chicago, ver Carmen. Ópera tem umas coisas engraçadas. A de hoje era o fato de Don José ser coreano. Pensei que isso jamais funcionaria. Tá certo que, na hora das lutas de faca, ele sempre parecia mais hábil que o Don José da minha imaginação, mas Yonghoon Lee roubou a cena. Deu até pena da Carmen, se é que isso é possível. Sobre a ópera, preciso dizer como me encantou o libretto. Ou talvez a história original, de Prosper Mérimée. Já me queixei com alguns amigos especialistas no assunto sobre o exagero em alguns librettos. Parece que, numa encruzilhada, sem saber como explicar a mudança de um personagem, lança-se mão de um feitiço, uma distração, e pronto! Coisa que em novela das oito seria duramente repreendida. Pois em Carmen, isso nunca acontece. São todos humanos, demasiado humanos, até. E com tudo isso, ainda tem a música de Bizet, que dialoga tão perfeitamente com o canto, que somos transportados imadiatamente a Sevilla. Quatro horas que parecem duas. Demais.
Saímos em êxtase de lá e seguimos para o que seria a maior revelação dos últimos tempos. Fomos ver nosso primeiro espetáculo de Butoh. Já tinha visto o Sankai Juku no cinema, em "Cherry Blossoms". Fiquei super curiosa e quando vimos que eles estariam no Harris Theater corremos pra comprar ingressos. Pois não era nada do que eu estava esperando.
Já falei algumas vezes nos orientais por aqui, especialmente do cinema. E mais especialmente ainda, do Koreeda, de quem sou fã incondicional. Mas nada havia me preparado para aquele espetáculo. Em seis cenas, Amagatsu Ushio nos apresenta a vida. Da escuridão do útero, ao peso da solidão, da culpa, à descoberta de si mesmo. E o mais maluco é que a gente sente tudo isso, reflete sobre nossa própria vida.
No palco, um pó fino, como de um jardim japonês, cria desenhos de altos e baixos, como os dias. Grandes vasos, mais semelhantes a centros de mesa cheios de água, se espalham pelo chão. Em alguns deles, pequenas gotas continuam caindo. O ritmo é lento. Tão lento que nem parece se tratar de uma dança, mas de uma sucessão de quadros. O pintor em questão dá preferência a cores primárias e a um jogo de luz de deixar Vermeer cheio de inveja. É claro que essa experiência é dolorosa. Tanto que dezenas de espectadores deixaram a sala durante a performance. Quem resistiu até o final ganhou uma viagem pelo inconsciente que nem a melhor das meditações é capaz de guiar. Obrigada, Chicago.

Tuesday, October 19, 2010

Dia 264 - Entre Mahler e a favela


Chicago é mesmo uma cidade incrível. Depois de ir a dois museus fabulosos (o de arte contemporânea com uma emocionante temporária do Calder), a um show do Chucho Valdez, a três filmes do Festival de Cinema e a um concerto da Sinfônica, resolvi que era hora de escrever.
O cônsul geral do Brasil aqui é o escritor João Almino, com quem passamos um dia, caminhando pela Universidade de Chicago. Já dá para esperar algo muito diferente de uma cidade onde nosso representante maior é um homem das letras. Pois Almino conseguiu trazer vários brasileiros, atuantes em diferentes áreas (arquitetos, escritores, artistas plásticos), para apresentar seus trabalhos aqui. Os últimos, conhecemos ontem.
Cacau Amaral, Rodrigo Felha e Cadu Barcellos, são três dos diretores de 5 X Favela, recebido com aplausos e um interessado debate no final da exibição que vimos no festival. O filme me deixou orgulhosa, em primeiro lugar, pela qualidade mesmo. Bem dirigido, com roteiros inteligentes, não subestima o espectador. Diverte, faz chorar, assusta. E, com cinco episódios distintos, é possível ter uma boa noção sobre vários aspectos da vida numa favela carioca: o medo, a amizade, as rivalidades entre quadrilhas, os sonhos. Outro ponto que me deixou orgulhosa dos brilhantes rapazes foi a postura. Acho o bom e velho complexo de vira-lata um companheiro do mal. Um daqueles "amigos" que quando a gente menos espera nos dão uma bela punhalada. Pois os três diretores não pediram desculpas nem obrigado. Simplesmente olharam no mesmo nível. Como disse Cadu, não se posicionam como cineastas da favela, mas cineastas, capazes de fazer qualquer filme.
E, só para deixar registrado, teve ainda o Mahler 7, regido pelo Pierre Boulez. Não e à toa que essa é a sinfonia mais desconhecida de Mahler. É difícil mesmo. Já no primeiro movimento você percebe que as coisas vão sair do planejado. Sempre brinquei que não deve haver profissão mais ingrata que a de percussinista de orquestra! Imagina ficar ouvindo tudo, tudo, pra só bater um gongo no final? Pois neste começo, vi os pobrezinhos correndo de um lado pro outro, demandados pela pujança daquelas notas que pareciam sempre esbarrar no "fora de hora". O segundo movimento, mais civilizado, digamos assim, destaca os sopros. Mas no terceiro, ele já volta para um clima "quem vem lá? que horas são? isso não são horas, que horas são?". No quarto, violão e bandolim, que desta vez fizeram as vezes dos tais percussionistas e ficaram três movimentos paradinhos, roubam a cena. Para culminar num quinto movimento estranho, com um final lindamente esquisito. E, pobre Boulez, tentando pôr ordem naquela bagunça. E não é que ele conseguiu?

Tuesday, October 12, 2010

Dia 257 - Meu encontro com o desconhecido


Já faz uns dez anos. Foi num dia muito, muito frio, em Paris. Lembro que era o primeiro domingo de novembro. Não por mérito da minha memória. Era esse o dia da gratuidade e, vivendo numa cidade cara, ganhando salário de estagiária, era sempre no primeiro domingo do mês que eu visitava meu museu favorito.
Mas aquela era a primeira vez em que eu ia até lá. Estava cheia de curiosidade, não apenas para ver Monet, Rodin, Renoir e tantos outros artistas que conhecia só de livros da Taschen, mas para conhecer a estrutura do lugar, que fora uma das mais charmosas estações de trem da cidade.
O Musée D'Orsay era mesmo tudo isso e um tanto mais. Naquele inverno de 2000, ainda tinha uma exposição temporária sobre a carreira do Nijinsky, com fotos e obras inspiradas nos movimentos dele.
Sala após sala, foram horas de encantamento. Passeei por rios cheios de vitórias-régias, andei por plantações de trigo, fiz piquenique na beira do lago. Descobri cores que desconhecia, rodeei inúmeras esculturas, guerreei com ávidos fotógrafos japoneses para sentir um respiro de impressionismo.
Até que entrei numa sala cheia.
Entre tanta gente, mal conseguia ver os quadros. Demorava. Eram pelo menos uns dez minutos para passar de um para o outro, fora o tempo que eu já levo naturalmente, de frente para cada um deles.
De repente, um mundo saltou da tela pro meu colo. Era "O quarto", de Van Gogh. Completamente diferente de qualquer reprodução que eu já tinha visto. Nada que eu conseguisse descrever, ou prever. O vermelho do cobertor, o azul da parede, o dourado das cadeiras. Tudo tão novo, tão único, que meu coração jamais poderia se preparar.
Caí no choro.
Chorava tanto e tão alto que as lentes japonesas passaram a se virar pra mim, desprezando Manet e Cézanne. Um papelão.
Minha tarde acabou ali. Saí da sala, bebi água, sentei num banquinho no corredor. E chorei, chorei, chorei.
Lembrei o motivo de eu nunca ter pôsters de quadros em casa: eles nunca reproduziriam a minha sensação ao ver a obra de verdade. E aprendi que um objeto retangular, pequeno e pessoal, pode ser tão poderoso quanto uma canção, um namorado, nossa mãe, ao falar de sentimentos.
Naquele momento, estava eu, em meu quarto apertado no 17eme arrondissement, com medo de morrer e ninguém me encontrar. Estava o pouco dinheiro, nunca suficiente para telefonar para casa. Estava a vontade de saber daquilo tudo e a assustadora descoberta de que tudo o que eu sabia até então era nada perto do que o mundo ainda tinha para oferecer.
Mas naquela época eu tinha meus 19, 20 anos, e descobertas fazem parte da rotina.
Lindo é descobrir que hoje, beirando os 30, ainda posso me sentir menina de novo. Aqui em Chicago, não foi Vicente, mas Eduardo o responsável pelo meu renascimento.
Descobri Hopper pouco antes de ir morar em Paris, lendo uma revista. A solidão dos personagens, as paisagens infinitas me pegaram pelo pé. Comprei um livrinho de mão e fui descobrindo aos poucos novas obras. Depois da temporada em Paris, voltei à Europa várias vezes, mas nunca consegui ver um quadro dele. Afinal, com tantos vizinhos geniais, para que um museu europeu daria destaque a um americano?
Chegando a Nova York, no Whitney Museum, tive meu primeiro encontro tête-a-tête com ele. Foi emocionante. De lá para cá, rodando a América, pude ver vários outros quadros de Hopper, exceto um.
"Nighthawks" foi o primeiro Hopper que eu vi na vida, naquela revista. Foi ele que despertou em mim o amor pelo artista. E hoje, por alguns minutos, ele foi só meu.
Numa terça-feira de dia lindo em Chicago, não havia quase ninguém no Art Museum. Passei por várias salas para conhecer a belíssima coleção de impressionistas de lá. A segunda mais completa do mundo, dizem eles, só perdendo para... tcharam! O Musée D'Orsay. Devia ser um pernúncio que eu não entendi, então, mais uma vez, não me preparei. Fui desembestada para a sala, com se fosse encontrar um velho amigo, que eu só conhecia por foto. Só que o tal amigo era completamente diferente do que eu imaginava. Na parede do diner, um amarelo cor de luz. O verde... Não sei... É quase o verde água da caixa de 36 cores da Faber-Castel, só que bem mais intenso. Quase molhado. E se antes eu não sabia o que estava se passando entre aquelas quatro pessoas, hoje, soube menos ainda. Não sei nem mais se se conhecem. O casal.... casal? A única coisa que sei é que, depois de visitar mais de 20 estados, depois de mais de nove meses morando nas estradas americanas, posso dizer que Hopper conhece a alma deste país como ninguém. Solitária. Devastada. Devastadora. Única.
O museu nada mais é que o lugar onde diferentes partes do mundo aparecem entre quatro pedaços de madeira.
PS: A reprodução acima é só para o leitor se localizar, mas não tem nada, nadica a ver, com a emoção da obra verdadeira. Vê-la já vale a viagem. E Chicago tem muito mais.