Tuesday, May 25, 2010

Dia 117 (25/05) - Mesa da vovó


Comer, nos Estados Unidos, não é das atividades mais deliciosas. Além de exibirem um cardápio, digamos, não muito diverso, eles levam a sério essa história de fast food. É o espírito do capitalismo, que não permite uma conversa mais comprida na mesa. Para se ter uma idéia, na maioria dos restaurantes, quando chega para oferecer a sobremesa, o garçom já traz a conta no bolso e, se a resposta for não, joga a melindrosa na mesa. Aquela coisa de passar a tarde no botequim, tão nossa, por aqui não existe. Hoje, no entanto, tive uma experiência única aqui em Nashville. Chegamos à cidade à tarde e, seguindo o guia, fomos ao restaurate Monell's, com a promessa de experimentar "uma nova tradição do sul". Era mesmo uma coisa completamente nova. Apresentando-nos a "family style", que para mim significava PF bem temperado, o garçom nos sentou na cabeceira de uma mesa comprida. Na outra ponta, uma americano gorducho se deliciava. Daí o garçom foi tirando as vasilhas do lado dele e colocando para a gente. O tal estilo família, nada mais é que o almoço de domingo na casa da vovó Penha. Uma mesa grande, bagunçada, cheia de gente falando alto e compartilhando os pratos. Uma maravilha! Aqui, você paga um preço fixo (que para mim, vegetariana, foram módicos USD 9,00) e come o que quiser. Tinha pudim de milho, galinha frita, salada de brocólis, de pepino, de ervilhas com bacon, carne assada, couve refogada, purê de batata. Incrível como uma mesa bem posta nos remete aos melhores momentos da nossa vida. Parecia que ali eu estava matando as saudades do mingau de aveia da Vovó Bininha, abraçando minha irmã, ganhando coceguinhas do tio Fernando. Ah, se os americanos soubessem!

Dia 116 (24/05) - Beale Boy King e um rei brasileiro


Hoje saímos para fazer imagens da cidade antes de gravar e resolvemos almoçar no BB King's Blue Club, na Beale Street. Não é que uma brasileira veio nos atender? Primeiro fizemos o pedido em inglês. Depois, ouvindo a gente conversar em português, Tamy perguntou de onde a gente era. Nos encantamos à primeira vista com a história de luta dessa imigrante. Aos 24 anos, ela já rodou boa parte do país trabalhando numa churrascaria. Casou-se, teve dois filhos, se separou e voltou a morar em Memphis para dar uma vida mais sossegada aos filhos. Claro que ela também aproveita. Adora trabalhar ali, conhece os melhores bares, aprendeu tudo sobre blues. Um achado. Passamos no Sun Studios, onde Elvis, Roy Orbinson, Johny Cash e muitos outros gravaram seus primeiros ábuns (na foto aí do lado, eu canto no mesmo microfone que Th King of The Rock cantava na foto atrás). De lá, ainda fomos gravar no St Judes Hospital, onde um médico brasileiro faz um trabalho lindo. Quando chegou aqui, 24 anos atrás, Dr. Raul conta que o índice de cura de crianças com câncer no Brasil era zero. Aqui, poucas se salvavam. Hoje, 94% dos casos de leucemia são curados. Orgulhoso dos resultados, ele trabalha mais. Visita países, tentando implementar o mesmo projeto. Entre eles, o Brasil, onde, no Recife, funciona um centro de referência no tratamento pediátrico da doença. Um rei, um salva-vidas, um orgulho.


Dia 115 (23/05) - The real King


Mais uma oportunidade de conhecer a história dos Estados Unidos nos foi dada hoje, no Civil Rights Museum, em Memphis. O lugar poderia ser simplesmente assustador, dar arrepios, pois foi ali que Martin Luther King foi assassinado em 1968. O hotel Lorraine poderia ser uma espécie de Sixth Floor Museus, em Dallas, onde senti um misto de calafrios e dor de barriga. Lá, em vez de contar apenas a história de vida de Dr King, a gente passeia pela bela, ainda que sofrida, luta dos negros americanos em busca de igualdade de direitos. Podemos entrar numa réplica do ônibus em que Rosa Parks decidiu não se levantar, para mudar o mundo. Vemos um bar os se faziam os seat-ins. E, sobretudo, temos uma aula de história americana. Talvez o meu maior "sacode" tenha sido justamente perceber que os americanos podem ser pessoas lindas, inteligentes, que levam, sim, a liberdade e a justiça como bandeiras. Claro, estavam lá os red necks, a KKK, e tantos movimentos que nos causam repúdio e nos fazem questionar a verdadeira essência do ser humano. Mas também estão lá heróis, anônimos ou não, que acreditavam nas pessoas, na vida, num sonho. Quando se mata um sonhador, não se mata necessariamente o sonho, dizia um deles. Daqui, continuamos com muitos sonhos e algumas realizações, mas seguros de que às vezes, uma pessoa pode mudar o destino do mundo todo.

Dia 114 (22/05) - Clarksdale


Em Clarksdale o blues foi criado. Ali, na região do Delta do Mississippi, bluseiro que se preze ou nasceu ou passou boa parte da vida. John Lee Hoocker, W.C Handy, BB King, Ike Turner, entre eles. O ator Morgan Freeman também é daqui e hoje tem dois restaurantes bacanas à beça na cidade. O Mardidi, mais arrumado, é ótima pedida para o jantar. O Ground Zero tem shows de blues, comida boa e um estilo largado com charme. Estar aqui me levou de volta às rodas de violão em Vitória, em que o Chico e o Antonio, ainda achando que mudariam o mundo, cantavam "Vampiro Doidão" como se fosse uma grande música. Estavam todos ali. Os meus amigos, mas também Muddy Waters, o maior orgulho da cidade. E o mais curioso: ontem, em Memphis, vimos um show bacana na Lewitt Shell, mas não conseguimos entender o nome do cara. Parecia algo como "Super Chicken", nome estranho demais para eu confiar apenas na minha compreensão da língua inglesa. Mas era isso mesmo, exceto pelo fato de que a grafia é Chikan, pra ficar mais chique. Pois não é que o cara é um mito entre os apreciadores de blues e estava na parede do Museu? Mais que isso: um americano almofadinha, blusa pra dentro da bermuda e mocassim, nos puxou num canto do museu e convidou: "venham comigo e finjam que são meus convidados". Chico, desconfiado, quase não foi. Eu segui. De repente estávamos numa salinha, com outras dez pessoas, num show privé do tal Super Chicken dentro do Museu. Um luxo! Mas a maior surpresa do dia foi mesmo Clarksdale. Eu imaginava uma cidade relativamente desenvolvida, grande. Que nada! O lugar parece mesmo ter saído de uma canção do Robert Johnson (aliás, fica ali a encruzilhada em que ele teria feito um pacto com o diabo); em cada esquina parece que uma guitarra chora com uma faca sendo usada no lugar do slide. Dá vontade de andar de sapato bicolor por aquelas calçadas por onde tantos gênios passaram. Da vontade de ouvir Blues Before Sunshine.

Saturday, May 22, 2010

Dia 113 (21/05) - The king is alive


Depois de uma manhã cheia de coisas a resolver, do supermercado, à tosa do Pinduca, passando pelo Fedex e o banco, finalmente fomos conhecer Graceland, a casa de Elvis Presley. Tivemos a companhia de Jane e Eddie. Ela, médica, brasileira. Ele, músico, do Tennessee. Conhecer a cidade pelos olhos de moradores é mesmo outra coisa. Eddie sabia tudo sobre Elvis e tudo sobre Graceland. Mas o mais bonito ele não descobriu em livros. Veio do coração dele a certeza de que, tantos anos depois (Elvis faria 75 anos em 2010, mas morreu com apenas 42) 600 mil pessoas vão visitar o lugar todos os anos porque Elvis é o resumo do sonho americano. Para o bem e para o mal. Ele explica: é simbólico, um orgulho viver num país onde alguém pobre como ele possa construir um império com base apena no próprio talento e em trabalho. Por outro lado, o tal sonho é nocivo na medida em que oferece ao seu dono um mundo de fantasia, onde não se sabe quem é quem, nem aonde se pode chegar.Foi especial ver aquelas salas dos anos 60, somadas ao jeito Elvis de ser, e entender que aquilo tudo é parte da formação desse povo. Elvis continua levando turistas para a cidade que tanto amou, enche os cofres americanos mesmo depois da morte. Fez da sua casa a segunda mais visitada dos Estados Unidos (perde apenas para a Casa Branca), apesar de ter buscado a vida inteira um minuto de sossego, Apenas o segundo andar é fechado ao público. Era o refúgio de Elvis, o único lugar em que ele se sentia Presley.

Para deixar registrado, fomos jantar no Rendez-Vous, lugar indicado em todos os guias, pelas famosas costelas. É muito bacana. Comi feijão com arroz, no capricho e Chico se deliciou com as ribs. Vale a pena!

Dia112 (20/05) - Rock n'Soul


A chegada a Memphis já havia sido promissora. Ontem à noite fomos à Beale Street, só mesmo porque o guia indicava. O lugar é como uma mini Bourbon, mas mais charmosa, mais elegante, se é que você me entende. Não tem aquela turma louca, andando com bebidas gigantes e coloridas nas mãos. É uma coisa mais blues. Pois hoje descobrimos a história da Beale e ela se tornou muito mais bacana. Aliás, Memphis foi um maravilhosa surpresa. No Museu Rock n'Soul, além de ouvir seis horas de música, o vistante tem lições sobre o surgimento desses ritmos. Elvis, Roy Orbinson, BB King,estão todos lá. Também estão ídolos locais que eu desconhecia, como Rufus e Carla Thomas. Oties Redding eu só conhecia pela história trágica e a voz marcante, mas hoje deu para descobrir muito mais. A região do sul do Tennessee, perto da fronteira com o Mississippi, sentiu comopoucas a tensão racial. Basta dizer que foi aqui, em 1968, que morreu Martin Luther King, assassinado no bar do hotel em que estava hospedado, logo depois de pedir que o saxofonista tocasse seu hino favorito. King estava na cidade para apoiar a greve de funcionários da limpeza urbana. Hoje o hotel virou o Museu dos Direito Civis. Fechamos a noite num bar super bacana, o Flying Saucer, que tem cervejas para todos os gostos. E fui dormir sonhando com o que Memphis me apresentaria no dia seguinte. Como é bom se apaixonar!

Dia 111 (19/05) - Judas perdeu as botas no Brazil!


A caminho de Memphis, depois de uma noite iluminada ao lado de Ryan, Lindy e família, resolvemos parar em Brazil. Isso mesmo. Existe uma Brazil no meio do Mississippi. Claro que o Ryan mandou um email para nos ajudar a achar o caminho e eu já havia olhando as instruções na internet. Até que chegamos a um lugar no meio do nada e vimos a placa. Pronto! agora vamos achar Brazil. Seguimos por quilômetros em ver uma casa com sinal de vida, um morador, nada. Até que o simpático Andrew aparece pilotando um trator. Verde e amarelo, acreditem. Paramos o motorhome ali mesmo e eu fui perguntar se ele sabia onde ficava Brazil. "This is Brazil!" Pois bem Brazil é duas curvas depois de onde o vento fez a curva, um pouco depois da casa do chapéu. Um lugar abandonado, onde vimos casas destruídas e uma queimada. Como a foto mostra, no entanto, Brazil tem um lugar para votação. Os moradores, onde quer que eles estejam, podem escolher candidatos e, se bobear, lá tem até prefeito. Andrew disse que é assim mesmo, não tem nada, e soltou uma gargalhada quando eu perguntei se tinha restaurante. Nunca na minha vida eu quis tanto ir embora do Brazil.

Friday, May 21, 2010

Dia 110 (18/05) - Se ele forem a alma do Mississippi...


...este é o estado mais rico dos Estados Unidos. Hoje conhecemos uma família americana atípica. Pelo menos não tem nada a ver com o esteriótipo do americano que não se ineteressa por outros países ou pessoas. Lindy é uma carioca de sotaque carregado que se casou com um americano e deixou tudo para trás para viver um grande amor. E para isso, nem precisou ter braço de remador, porque o Ryan já o tinha. Ele é um daqueles caras iluminados, que jamais passarão a sua frente sem mudar, pelo menos um pouquinho, a sua vida. Ryan tem sorriso aberto e um dom raríssimo: consegue olhar para tudo com amor. Assim, vai transformando o mundo. É um herói anônimo, um cara que nem precisaria ter um mundo melhor como ideal. Bastaria espalhar sua gargalhada por aí e o mundo mudaria por si só. Ryan construiu um simulador de vôo com carretéis. Ryan aprendeu português com um livrinho velho. Ryan disse que eu estava salvando uma vida apenas porque dei uns minutos de atenção a um menino da pobre Forchard Street. Ryan tem pais que viveram na pele o auge do racismo, na década de 60, mas diz que as pessoas têm de "morar juntas", se conhecer, para saber que toda raça tem contrubuições e, por isso, não devem se pensar isoladamente. Conhecer o Ryan e a maravilhosa família dele foi uma alegria. Do mesmo jeito que cidades podem se assemelhar a pessoas, algumas pessoas podem fazer uma cidade. Por causa deles, Jackson se tornou uma cidade inesquecivel.

Wednesday, May 19, 2010

Dia 109 (17/05) - Um problema pesadíssimo


Não foi à toa que resolvemos falar de obesidade aqui, no Mississippi. O estado é o que tem o maior índice de obesos nos já obesos Estados Unidos. Por aqui, 32% estão nessa situação e quase 80% têm sobrepeso. É assustador para nós, brasileiros, ver tanta gente se entregando a um problema de saúde tão grave. O prejuízo para os cofres do estado é tanto, que muito se tem investido em pesquisa. Hoje entrevistamos dois brasileiros que se dedicam a descobrir as relações entre obesidade, pressão alta e diabetes. Tentam isolar um tal hormônio chamado leptina para ver no que ele contribui para a obesidade. Alexandre e Jussara nos deram uma idéia do perigo que é conviver com o problema e nos mostraram mais um pouco da vida em Austin. Ele a classificou como uma grande Itaú de Minas, cidade do interior do Brasil de onde ele vem. Ela disse estar bem feliz aqui, apesar da violência. O Mississippi tem a menor renda per capita do país, o pior sistema de saúde, o maior índice de obesidade. E ainda coleciona desafios, como combater o racismo. Um tema para o post de amanhã.

Dias 107 e 108 (15 e 16/05) - Como é bom ficar assim


Fim de semana em Jackson, não adianta inventar, não há muito o que fazer. Nós resolvemos passear pela cidade e fazer compras. Tentamos ir ao High Noon, um vegetariano bacana, indicado pelo Maurício, que está numa mini, mas completíssima road trip. Pena que estava fechado e só fizemos compras no mercadinho do Rainbow. Também fomos a um bom restaurante, Julep, onde um simpático garçom nos fez uma lista dos melhores restaurantes da cidade. O interesse dele pela nossa mesa não veio dos meus belos olhos ou da generosa barba do Chico. Ele viu que chegamos num carro com a bandeira do Brasil e quis nos contar que estava na faixa azul no Jiu-Jitsu. Pois é. Aqui no Mississippi, Ronaldinho é desconhecido, mas a família Grayce reina. Já é a segunda pessoa que se aproxima da gente falando deles, dizendo que é fã, mandando abraços. Há mais coisas divulgando o nosso país do que se imagina. Ainda vimos o fraquíssimo "Letters to Juliet" (o que é que eu esperava)? Era só o que tinha no cinema. Juro.


Dia 106 (14/05) - Para quem achava que co Pavão Azul era pé sujo...


Depois de passar o dia no camping fechando texto, resolvemos sair em busca do que o guia nos mostrava ser o melhor de Jackson. Entre as "mil coisas para se fazer antes de morrer nos Estados Unidos e Canadá", estava comer um hamburger do Stamp's Burgers, na capital do Mississippi. Chico procurou os endereços na internet e achou dois diferentes, um deles era o mesmo de um tal Cool Al's, "o melhor hamburger vegetariano da cidade", seguindo algum site. Colocamos esse endereço e não vimos o tal do Stamp's Burgers. Decidimos, então, seguir para o outro. Foi quando nos deparamos com um lado estranho da cidade: ruas escuras, uma mulher bêbada se jogando na frente do carro, e o tal Stamp's, que mais parecia a parada de um trem fantasma. Decidida, disse ao Chico, "vamos assim mesmo". Mais decidido ainda, ele disse, "vamos embora já"! Resolvemos, então, tentar novamente o tal Cool Al's. O lugar é um pé imundo, sem exagero algum, no coração da vizinhança negra do Mississippi. Até eu, escoladíssima depois de um ano de Harlem, achei que estavam me olhando torto demais. De toda, forma, valeu a aventura. Comi batatas doces fritas, completamente diferetes de tudo o que já haia provado, e um delicioso e imenso hamburger vegetariano, com direito a fatia de abacaxi, para me deixar cheia de saudades do Cervantes.


Friday, May 14, 2010

Dia 105 (13/05) - Mais uma capital


A viagem de Biloxi a Jackon deveia ser uma das mais curtas que já fizemos: apenas três horas. O problema é que o gps nos mandou pelo caminho mais curto, evitando highways, mas pegando um bocado de sinais e pistas de baixa velocidade. Demoramos mais de quatro horas. Em compensação, vimos um estado que as auto-estradas escondem. Casinhas pequeninas, florestas e lagos, muitos lagos. Chegando a Jackson, num camping simples, mas à beira de um deles. Uma paisagem linda (na foto ao lado, estamos nele, com Chico fazendo um amigo). À noite, a grande surpresa: numa cidade perto daqui estava em cartaz "Babies", um documentário que estava sendo anunciado quando ainda estávamos em Dallas (quanto tempo faz, meu Deus?). Em filmão, inspirador para quem busca o mundo, para quem está viajando, para quem está filmando, para quem gosta de boas histórias, para quem gosta de desafios. Com planos lindíssimos, o diretor Thomas mostra o primeiro ano de vida de bebês na Namíbia, na Mongólia, em São Francisco e em Tóquio. Sem entrevistas, sem narração, apenas com aqueles grunhidos tão cheios de significados que só os bebês têm, o filme retrata realidades diferentes sem arrogância, mas indo direto ao nosso coração. Recomendo.

Dia 104 (12/05) - Biloxi e Maurília


Calvino continua puxando meu tapete. Quando fala de Maurília, em "As cidades Invisíveis", ele descreve Biloxi, a cidade a que chegamos hoje. Às vezes parece que ele está conosco, na estrada, descobrindo este país tão rico e contraditório. O Mississippi é o estado mais pobre daqui, com o menos nível de educação dos moradores e o maior índice de obesidade. Sofreu com o Katrina, agora sofre com o vazamento de petróleo e, o mais maluco, é uma terra tão desgraçada que nem como tal é lembrada. Quando a gente pensa no Katrina, fala a verdade, vem à cabeça New Orleans. Nessa história do vazamento até a Flórida está sendo citada, mas o pobre MIss, coitado! Biloxi já foi a terceira cidade do estado. Caiu para a quarta posição depois dos danos causados pelo furacão. Passamos por algumas áreas atingidas e, de mansões, sobrava apenas o piso. Às vezes uma única coluna do que havia sido um quarto resplandecia. Uma dor. Conversamos aqui com dois brasileiros que viveram isso e foram categóricos: não é um estado bom para os imigrantes. Falta emprego, sobra ignorância. Mas a tal Maurília, de Calvino, me lembrou Biloxi por outro motivo. Ele fala de uma cidade substituída por outra, com o mesmo nome. De colinização francesa, Biloxi já foi uma New Orleans. Os casarões, coretos, tudo o que permeava a minha imaginação por causa dessa referência, virou uma sucessão de cassinos. Uma tentativa de Las Vegas. Apenas um velho farol, em frente à praia de areias brancas, lembra que deuses deviam morar ali. Hoje, são deuses desconhecidos, que talvez tenham tirado umas férias de lá e ido passar uma temporada ou em Las Vegas, ou em alguma praia paradisíaca. Bem longe dali.


Tuesday, May 11, 2010

Dia 103 (11/05) - Por que precisamos dos gênios?


Quando a gente passa por muita coisa ao mesmo tempo, há que buscar maneiras de organizar pelo menos uma parte delas dentro da alma, ou a gente enlouquece. À beira de me dizer Napoleão, corri paraantigas e eficientes alternativas. Voltei a meditar de manhã, correr, fazer uma série curtinha de exercícios debruçada no RV mesmo (feito aqueles de revista feminina que a gente não usa na academia, e que sempre achei que não serviam para nada, até descobrir que eles são feitos para pessoas que moram em RVs e não conseguem ir a academias saindo de uma cidade para a outra) e, por fim, ouvir meu "Triplo mantra". E, poucos dias, já me sinto, se não mais organizada, mais blindada em relação às inconveniências que vinham insistindo em bater à minha porta.

Eu só havia esquecido que existe uma outra tática anímico-organizadora tão poderosa quanto o desgaste físico: a leitura. Já fazia mais de um mês que estava agarrada na biografia do Louis Armstrong, "Pops", um livro maravilhoso, mas excessivamente rico. É o problema da biografia. Ao mesmo tempo que tem a beleza de fazer você compreender o outro, é meio chato para que não lê Contigo ficar um tempão se ocupando em saber tudo da vida de alguém. Daí, ontem, passei para "As Cidades Invisíveis", do Ítalo Calvino. Dele eu só havia lido "O visconde partido ao meio" e " O cavaleiro inexistente". As duas obras-primas, aliadas à história de vida do autor, já me faziam colocá-lo no meu pequeno altar de gênios. Ontem, ele me surpreendeu. Vi como ler faz falta para escrever melhor. Como a visão do gênio nos é necessária no processo de tentar entender o novo! Falando de Anastácia, ele parecia definir Las Vegas:

"A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outro lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos seus desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo."

Falando de Zaíra poetisava minha última paixão, Nova Orleans:

"A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras."

Quisera eu ter dito que a cidade contém seu passado, como as linhas da mão!

Pois bem, hoje chegamos a mais um novo estado. O MIssissippi. Biloxi é bem menos inspiradora que Nova Orleans. Hoje mesmo, uma mulher (tudo bem que a placa do RV dela era do Texas...) gritou comigo pela janela do RV que eu tirasse o meu gato de perto da caminhonete dela. Hein? Quem no mundo se incomoda com uma gata vira-lata linda, andando calmamente numa coleira? É, meus amigos, estamos de volta à América. Quem sabe com o olhar de Cavino pousado no meu ombro, eu consiga tirar daqui alguma inspiração.

Monday, May 10, 2010

Dia 102 (10/05) - Eu e o vovô


Anteontem escrevi aqui falando dos cds que havia comprado numa loja local. Coisas maravilhosas e, entre elas, Grandpa Elliot, aquele senhorzinho que tocava nas ruas de New Orleans, foi descoberto após um vídeo do Playing for change cair no Youtube e ter mihões de acessos. Amigos de NY chegaram a ir a um show dele; um simplesmente adorei o cd. Pois hoje, que surpresa. Enquanto filmávamos na esquina da Royal com a Toulousse, Chico disse: não é o Grandpa Elliot ali? E era. Assim mesmo, como aparece nas fotos do disco, como a gente viu no vídeo. Pensei um monte de coisas. Primeiro, a frustração de saber que o cara não virou uma mega estrela depois daquilo e continuava na mesma esquininha da sua cidade natal. Depois, a realização e imaginar que, ser um artista de rua em New Orleans não tem nada de indigno e deve ser motivo de orgulho para muita gente. Bom mesmo foi ver que o cara, velhinho, com um cd gravado e um vozeirão, estava feliz, curioso para saber de que faixa eu mais tinha gostado. Tive que dizer, quase em tom de conselho, "Let it shine", Grandpa.

Sunday, May 9, 2010

Dia 101 (09/05) - Jardins cinzas


Seguindo mais conselhos do Bob, tivemos mais um dia de "local" aqui em Nova Orleans. Começou com um almoço ao som do Some like it hot, no Buffa's. O que mais me impressionou, no início, foi que a maioria dos integrantes da banda era mulher. Depois, fiquei surpresa com meu próprio chororô diante de um rapaz negro que estava em uma das mesas e levanto para cantar. Um só música e ele roubou a cena. Chico, que esta lendo A história social do jazz, disse que o Hobsbawn diz que o pior baterista negro era mil vezes melhor que o melhor entre os brancos europeus. Nos perguntamos por que, e respondi na hora: deve ser por isso; estou chorando com o cara. É a emoção. E Chico disse que também era assim que o historiador explicava: o jazz e a música da emoção.

Nosso dia ainda teria outras polêmicas. Vimos, no teatro, Grey Gardens. Sempre quis ver a peça porque não entendia como alguém poderia montar um documentário, ainda mais um tão duro e triste como esse dos irmãos Maysles. A resposta está na pobreza da montagem, que faz graça da desgraça dos outros. Triste é ver o pessoal sari do teatro como entrou, depois de uma história que, bem contada, é capaz de mudar vidas. Não sei qual foi a reação dos irmãos à adaptação, mas a minha foi a pior possível. Só serviu mesmo para a gente ter um debate rico na hora do café com pralines, sobre o papel do documentarista, do jornalista, do antropólogo. Bem, tudo sempre serve para alguma coisa...


Saturday, May 8, 2010

Dia 100 (08/05) - A todo vapor


Hoje a gente comemorou os cem dias sem saber que era dia de festa. Decidimos deixar a câmera em casa e fazer um passeio com o Natchez, o famoso barco a vapor que atravessa o Rio Mississippi. Foi o momento mais turístico desses dez dias em Nova Orleans, mas foi um dos que mais valeram a pena. Tomar uma cerveja Abita vendo aquela linda paisagem, num dia de sol forte, mas não quente demais e, o mais importante, sem compromissos, foi maravilhoso. Saímos de lá e passamos na Music Factory, uma maravilhosa loja de cds locais, onde deixamos boa parte do nosso salário, por ótimas causas. Trouxemos para casa dois cds da Margie Perez, minha nova fixação, Grandpa Elliot, Allen Toussaint e Elvis Costello, Blu Lu Barker (que eu nem sabia que existia em cd) e até um dvd dos shows do Ray Charles no Brazil, em 1963. Entre outras coisas. Ainda deu tempo de passear pelo French Quarter, comprar lembrancinhas, provar deliciosas pralines e voltar feliz pro camping.

Dia 99 (07/05) - Frenchmen Street

Para quem acha que a Bourbon Street ficou turística demais (eu, inclusive) a Frenchmen Street é feita sob medida. Cheia de artistas de primeira, tocando em bares que se acumulam, ou mesmo no meio da rua, é o melhor lugar para aproveitar a noite da cidade. Ontem, vimos uma banda ótima, Tuba skinny, tocando de graça. Depois, uma menina de uns 17 anos arrebentando no trombone. Uma rua charmosa, que tem ainda o Praline Connection, um restaurante de comida típica com gosto de casa da vovó. Deve ser a primeira parada de qualquer apaixonado por música e boa mesa.

Dia 98 (06/05) - Bob e Zydeco


Demos uma sorte danada ao encontrar Bob Freeland no nosso caminho. O nome americano esconde um brasileiro cheio de histórias. Filho e um americano e uma brasileira, nascido em São Paulo, ele morou no Panamá, em Lima, em São Paulo, Rio... Enfim, em dez cidades diferentes. E foi New Orleans que ele escolheu para chamar de casa depois da aposentadoria. E foi aí que ele começou uma nova vida. Deixou de lado a empresa de cartões de crédito para dar aulas de história e virar guia de turismo. Durante um dia, ele foi o nosso guia. E ver a cidade pelos olhos de uma pessoa tão apaixonada foi maravilhoso, nos deixou ainda mais apaixonados. Passeamos pelo French Quarter, comemos um Gumbo delicioso, visitamos o convento das Ursolinas, e ele ainda nos deu dicas para depois do passeio. Fomos ao Rock and Bowl, uma casa de shows aberta desde 1941, que já recebeu estrelas da música daqui. Hoje era dia de zydeco, uma espécie de forróblues. Instrumentos eletrônicos, sanfona, reco-reco. Juntos, trouxeram um som único, que fez a gente se acabar de dançar.

Dias 96 e 97 (04 e 05/05) - A Nova Orleans reconstruída


Depois de um dia pesadíssimo ontem, passamos dois dias indo e vindo pela Nova Orleans já inteira. na área turística da cidade, o French Quarter, tudo já está bonito, reconstruído, quiçá melhor que antes. Ainda assim é estranho imaginar que o aquário central perdeu todos os peixes porque não havia luz.

Passando o susto, é possível aproveitar e muito as belas construções dessa cidade que já foi da Espanha, da França, dos Estados Unidos, claro, e sempre será dos africanos. Na culinária rica, na arquitetura charmosa, na música diversa, Nova Orleans é única. Talvez seja a menos americana das cidades por onde passamos. O que pode ser uma alegria e tanto.

Longe dali, em Kenner, também conhecemos Greyce, um brasileiro que veio para cá depois do furacão. Pois é, a cidade que tinha mais de 500 mil habitantes viu esse número cair pela metade, mas a comunidade brasileira só cresceu. Foram trabalhadores de todo canto, vindo ajudar na reconstrução.

Dia 95 (03/05) - Somos iguais em desgraça


Desde o festival venho pensando que New Orleans é, de longe, a cidade americana mais parecia com o Brasil. Antes de mais nada, pela gente. São pessoas singularmente felizes, apaixonadas pelas próprias raízes. Gostam da música que fazem, da comida que preparam, brindam às próprias tradições. Também saber ser felizes, sabem atropelar os pesares, sabem trabalhar menos quando necessário. Claro, não estou falando de todos, mas da índole do povo, da energia que se sente cá e lá. Mas hoje, gravando no 9th Ward, tive a triste percepção de que somos parecidos também em coisas ruins. A área, baixa, foi a mais atingida pelo furacão Katrina, 5 anos atrás. O dinheiro para a reconstrução não chegou às mãos de boa parte das famílias e a força dos voluntários e das ongs, naturalmente, não foi suficiente para reconstruir a área, que mais parece uma cidade fantasma. casas abandondas, índices de violência altíssimos, miséria. Vimos operários tirando entulho de uma casa, 5 anos depois. Um deles me disse"onde está o governo? Nã sabemos dele e ele não sabe da gente". Vimos um homem numa cadeira de rodas morando de favor com amigos, 5 anos depois. Vimos lama dentro das casas, 5 anos depois. E lá, mais uma vez, nos demos conta das nossas semelhanças. No meio de tudo isso, os tais operários riam alto, empurrando uns aos outros para a frente das câmeras, fazendo terríveis piadas homofóbicas e racistas, sendo felizes, no meio de tudo isso. Cinco anos depois.

Dias 92, 93 e 94 (30/04, 01 e 02/05) - Festival de Jazz


Nos nosso três primeiros dias em New Orleans, realizamos um sonho atrás do outro. Das 11 da manhã às 7 da noite, sexta, sábado e domingo, ouvimos música boa. De ídolos antigos, como Jeff Back, Pete Fountain, Earth Wind and Fire, Ellis Marsalis, Take 6 a novidades incríveis, como Margie Perez, de quem virei fã de carteirinha. O festival é organizado, tem banquinhas com comidas típicas (aqui Mc Donalds não passa nem perto) e resume muito da rica cultura de New Orleans: música de primeira, comida boa e gente feliz.

Dia 91 (29/04) - Putz!


Quando a gente imagina que já passou por tudo nessa estrada maluca, a chegada Nova Orleans nos puxou o tapete. Primeiro porque nos deparamos com paisagens terríveis. Passando pela área leste da cidade, parecia que uma bomba atômica tinha acabado de atravessar o caminho desta esperada cidade do sul. Chegamos ao camping, no meio desta região, e fomos recebidos por uma chinesa que não falava inglês com pinta de serial killer, coberta de pingos de tinta branca, que provavelmente ela usou pra ocultar sua última vítima. A distinta louca deu um envelope pro Chico e começou a dizer; "money, money". O tal camping onde a gente ficaria não tinha portão e era um terreno baldio mais mal cuidado que um terreno baldio de verdade. Fui pedir referência ao único grupo de pessoas ali dentro e quando me dei conta, era três bêbados. Entramos no motorhome, determinados a sair correndo dali, mas, sem endereço, paramos no portão à espera de uma luz da produção. Bow, bow, bow. Um gordo com cara de açogueiro de filme dos irmãos Coen bateu à porta ordenando que a gente saísse dali imediatamente. Depois desse passeio pelo trem fantasma, conseguimos parar em outro lugar, mais seguro e longe dali. E para descansar, fomos para a Bourbon Street, comer ostras e tomar uma Abita na The Bourbon House. Ufa!

Dias 89 e 90 (27 e 28/04) - A caminho da terra dos sonhos


Para chegar a New Orleans saindo de Miami são mais ou menos 13 hora num carro comum. No nosso, você já sabe. Por isso fizemos a viagem em dois dias. Primeiro, seguimos até a capital da Flórida, Tallahassee. Uma das nossas maiores diversões nesse trajeto foi tentar descobrir o motivo pelo qual os motoristas paraddos pela polícia estavam sendo advertidos. Era tanta gente sendo parada, que a curiosidade se tornava inevitável. Dormimo num camping ok para pegar a estrada novamente no dia seguinte.